Em Saydnaya, há sinais das técnicas utilizadas para esquartejamento e conservação de cadáveres; familiares se aglomeram em busca de pistas sobre desaparecidos
Hassan Fakiani ainda tem pesadelos com o dulab da prisão Saydnaya, a 30 quilômetros de Damasco, na Síria. Nesse método de tortura, o prisioneiro é obrigado a dobrar o corpo e enfiar cabeça, pescoço, pernas e braços dentro de um pneu. Desse jeito, totalmente imobilizado, o detento é brutalmente espancado.
Foi assim que quebraram a perna de Fakiani. "O guarda falava: 'vamos ver quem quebra antes, sua perna ou esse pau' [um porrete de metal com que ele o espancava]", contou Fakiani à Folha, nos arredores de Damasco, onde ele mora com o pai, que é motorista.
Ele ficou preso durante um ano e oito meses em Saydnaya por desertar do Exército sírio. Foi libertado no dia em que o ditador Bashar al-Assad caiu, quando milicianos do Hayat Tahrir al-Sham (HTS) entraram naquela que é considerada a pior prisão da Síria e soltaram todos os detentos.
Não foi só a perna que Fakiani quebrou em Saydnaya. Ele relatou que, durante as sessões de tortura, era queimado com maçarico e cortado com lâmina de barbear –e mostrou as cicatrizes. Ele diz que hoje não consegue dormir mais que três horas por noite e que não aguenta ficar sozinho.
Ainda assim, Fakiani escapou do pior. Muita gente que foi para Saydnaya nunca mais saiu.
Chamada de "abatedouro humano" pela Anistia Internacional, a prisão ficou conhecida pela tortura disseminada, bem como pelos desparecimentos e enforcamentos. Para lá foram levados dezenas de milhares de opositores políticos (ala vermelha) e militares desertores ou críticos do regime (ala branca) a partir do início da guerra civil síria, em 2011. Ser preso em Saydnaya equivalia a uma sentença de morte.
Por muitos anos, a prisão era um mistério. Ninguém tinha permissão para entrar, e só havia imagens de satélites e reconstituições a partir de testemunhos.
A liberação de Saydnaya mostrou ao mundo a sala de sal, um recinto onde se colocava uma camada da substância até o tornozelo para conservar os cadáveres de detentos que seriam levados para hospitais militares e, de lá, para valas comuns ou diretamente para covas individuais, mas sem identificação.
Muitos morriam enforcados após julgamentos sumários, conforme detalha relatório da Associação de Detentos e Desaparecidos da Prisão de Saydnaya. Rebeldes e civis postaram fotos de cordas ensanguentadas, com laços de enforcamento, que teriam sido achadas na prisão.
Entidades de direitos humanos estimam que mais de 30 mil detentos foram executados ou morreram em decorrência de tortura, falta de medicamentos ou inanição.
Na sala de sal, ficava uma máquina usada para cortar madeira que, segundo relatos, era usada para desmembrar os cadáveres e facilitar o transporte. Em uma sala ao lado, outra máquina que, de acordo com testemunhos, era usada para prensar cadáveres –uma prensa humana. Para evitar fugas, a prisão foi cercada de minas terrestres (que ainda estão lá).
A Folha esteve em Saydnaya e viu as celas de 7 metros por 3 metros do tipo em que Fakiani viveu. Lá ficavam entre 85 e 100 presos. Todos os dias, os guardas passavam e escolhiam aleatoriamente seis ou sete pessoas de cada cela que eram levados para o subsolo e torturados, conta Fakiani, em relato corroborado por outros detentos.
Saydnaya era a prisão mais severa da Síria. Os detentos eram proibidos de falar um com os outros (ou mesmo sozinhos), ou emitir qualquer som, mesmo de dor. Também estavam proibidos de rezar ou escrever nas paredes. Qualquer infração era motivo de espancamentos ou torturas como ter as unhas arrancadas ou levar choques.
Fakiani lembra que eles dormiam de lado, pois era a única maneira de todos caberem deitados. Era impossível sair no meio da noite para ir ao único banheiro, então muitos usavam sacos plásticos. Muitos desses sacos cheios de urina e fezes ainda estão lá. A comida era jogada no chão da cela, e os detentos tinham que comer do piso, com as mãos, conta Fakiani. Sarna, piolho, diarreia e tuberculose grassavam.
Diferentemente de Fakiani, muitos presos simplesmente sumiam no sistema. Os familiares peregrinavam por divisões da polícia e do Exército e não sabiam se filhos, primos e irmãos estavam mortos ou presos.
Na manhã desta terça-feira (17), Mariam Sleiman al-Saiid estava na porta de Saydnaya procurando o nome de seu marido em um dos livros com listas de prisioneiros. Anwar, que trabalhava em uma fábrica de biscoitos, foi parado em um comando da Inteligência da Força Aérea, o braço mais temido do serviço secreto do ditador Assad, em 2014.