BRASÍLIA
A tensão na relação entre o presidente Jair Bolsonaro (PL) e o ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), começou ainda em 2019, com a abertura do inquérito das fake news, teve picos em 2020, chegou perto de uma crise institucional no 7 de Setembro de 2021 e pode alcançar seu ápice no período eleitoral.
Entre aliados do presidente, o mais recente capítulo das rusgas entre os dois —a notícia-crime de Bolsonaro contra Moraes protocolada no STF e na Procuradoria-Geral da República— é visto como a sinalização do futuro auge da crise, uma vez que é classificado como estratégia para desacreditar o processo eleitoral.
Moraes, chamado nesta sexta (20) de líder da oposição por Bolsonaro, será o presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) durante as eleições de 2022.
É consenso entre os aliados do presidente que a notícia-crime não deve prosperar no campo jurídico, mas que foi capaz de criar um fato político para tentar consolidar a visão de que a falta de realizações do governo e uma eventual derrota nas eleições se devem às dificuldades na relação com a cúpula do Poder Judiciário.
Integrantes da ala mais radical do governo defendem, inclusive, que Bolsonaro aumente a pressão e leve a empreitada jurídica a tribunais internacionais.
A investida contra o sistema eleitoral por Bolsonaro começou com a defesa do voto impresso, derrotada no Congresso. Depois, o presidente aproveitou o convite da corte eleitoral para as Forças Armadas integrarem a Comissão de Transparência das Eleições para elevar o tom contra o tribunal.
Moraes assumirá o comando do TSE em agosto. A avaliação do entorno do presidente é de que ele acertou a mão com medidas jurídicas ao invés de permanecer na retórica, como antes.
A nova estratégia ficou mais clara devido ao comportamento de Bolsonaro nas redes sociais. Ele evitou publicar a ação na internet, como costuma fazer, para tentar dar um verniz de legalidade à sua atuação.
A suspeição que o bolsonarismo tenta jogar sobre Moraes também apareceu em fala do vice-presidente Hamilton Mourão na sexta-feira (20). "Eu considero [ministro parcial], acho que está havendo certa disruptura aí. Concordo que o presidente utilizou os instrumentos que tinha à sua disposição", afirmou.
Integrantes da campanha de reeleição do presidente dizem que a ofensiva pode não atrair votos, mas não tira.
A avaliação de que o STF tem sido injusto, em especial Moraes, encontra espaço entre eleitores de classe média, dizem aliados do presidente.
Eles utilizam como argumento pesquisas que mostrariam impopularidade ou desconfiança da população com a Suprema Corte. Em dezembro do ano passado, levantamento do Datafolha mostrou que apenas 23% dos brasileiros veem como ótimo ou bom o trabalho do STF, enquanto 37% o consideram regular, e 34%, ruim ou péssimo.
A estratégia do confronto, porém, é fortemente criticada por outros aliados do presidente, não apenas da ala política, mas também de pessoas que já integraram o corpo jurídico do presidente. A avaliação nesse grupo é que a ação era natimorta e provoca um novo ponto de conflito desnecessário com a corte.
Bolsonaro já havia atuado —e fracassado— em outra frente contra Moraes. Ele apresentou, em 2021, um pedido de impeachment contra o ministro no Senado Federal, que foi arquivado.
A semente da crise entre o presidente e Moraes é o inquérito das fake news, aberto em março de 2019, como uma resposta do STF às crescentes críticas e ataques sofridos nas redes sociais. Desde o início, a apuração foi controversa por ter sido instaurada por Dias Toffoli de ofício, ou seja, sem provocação da PGR.
Mas o primeiro ano de governo de Bolsonaro foi marcado por idas e vindas na relação. Naquele ano, Bolsonaro chegou a parabenizar Moraes pelo recuo na decisão de censurar a revista Crusoé e se reuniu com o ministro e o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, para debater as propostas do chamado pacote anticrime.
Em 13 de agosto de 2019, por exemplo, a Folha registrou uma foto de Moraes sorrindo enquanto participava de uma roda de conversa com Bolsonaro e os ministros Luís Roberto Barroso e Dias Toffoli.
O ano de 2019 acabou com Moraes arquivando duas representações em que partidos pediam apuração contra Bolsonaro e seu filho Carlos por causa da morte da vereadora Marielle Franco.
Mas se o ano anterior foi de pequenos contratempos, 2020 ficou marcado pela consolidação da crise entre os dois, paralelamente à escalada do discurso golpista de Bolsonaro.
Nos primeiros meses do ano e já com a pandemia, Moraes decidiu em ao menos dois casos contra os interesses do governo. Ele suspendeu trechos de uma medida provisória assinada por Bolsonaro para alterar as regras da Lei de Acesso à Informação e liberando estados e municípios a decidirem sobre o isolamento social.
A relação que não era boa continuou a azedar em abril, quando Moraes abriu inquérito para investigar as organizações de atos antidemocráticos que tiveram a participação do presidente e suspendeu a nomeação de Alexandre de Ramagem para o comando da Polícia Federal.
"Eu não engoli ainda essa decisão do senhor Alexandre de Moraes. Não engoli. Não é essa a forma de tratar um chefe do Executivo", disse o presidente à época.
O desdobramento do caso, que resultou em um inquérito sobre tentativa de Bolsonaro interferir da PF, e novas investidas nos inquéritos das fake news e atos antidemocráticos, fizeram a relação dos dois piorar de vez.
Em agosto, após várias ações da PF a mando de Moraes nos inquérito, Bolsonaro chegou a afirmar que a hora do ministro iria chegar.
Se em 2020 a tensão se consolidou, 2021 foi o ano em que as rusgas entre o presidente e o ministro se aproximaram de uma crise institucional.
Com o inquérito das fake news criticado, Moraes passou a fortalecer o caso dos atos antidemocráticos. Em julho, quando Augusto Aras pediu seu arquivamento, ele driblou a sugestão e abriu outra investigação, sobre as milícias digitais.
A discussão sobre o voto impresso estava em andamento e a suposta interferência de Moraes e Barroso junto a parlamentares fez o presidente e seus apoiadores aumentarem o tom.
O resultado foi a live de 29 de julho e a divulgação por Bolsonaro do inquérito sigiloso sobre o ataque hacker ao TSE.
As investidas desaguaram em mais duas frentes de investigação contra Bolsonaro de relatoria de Moraes e no aumento da crise entre os dois.
Em agosto, a inclusão por Moraes de Bolsonaro no inquérito das fake news, o acolhimento da notícia-crime sobre o vazamento, a ordem de prisão contra Roberto Jefferson (PTB) e, depois, buscas contra organizadores do ato de 7 de Setembro, resultaram no ápice da crise.
Durante a manifestação de raiz golpista em São Paulo, no Dia da Independência, Bolsonaro fez seu mais duro ataque a Moraes. "Sai, Alexandre de Moraes. Deixa de ser canalha", disse.
Dois dias depois, quando a situação se aproximava de uma crise institucional sem precedentes, Bolsonaro acionou o ex-presidente Michel Temer (MDB) e conversou com Moraes. A conversa entre os dois instaurou uma certa calmaria na relação, com Moraes segurando por mais de dois meses um relatório da PF sobre a live de 29 de julho.
Mas não foi o suficiente, porque, com os desdobramentos de outros casos, mais episódios criaram atrito entre o presidente e o ministro.
Em dezembro de 2021, Moraes abriu outra investigação contra Bolsonaro, dessa vez a pedido da CPI da Covid pela fala em que ele relacionou a vacina contra a Covid ao desenvolvimento de Aids.
O ano de 2022 começou com Moraes determinando a união dos casos da live e do vazamento do inquérito sigiloso ao caso das milícias digitais, que é visto por investigadores como principal anteparo contra investidas golpistas e ataques ao sistema eleitoral.
Com o indulto concedido por Bolsonaro ao deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), a tensão se alastrou para a relação do Executivo com todo o STF, fez aumentar os ataques presidenciais e alcançou mais um pico com a notícia-crime apresentada pelo presidente.