Para as lideranças políticas e religiosas da direita, interditar qualquer discussão séria sobre o tema permite manter um poder de chantagem sobre a esfera pública, além de uma clientela mobilizada pela manipulação de preconceitos e por falsas informações. À esquerda, poucos dão destaque à questão: impera a covardia e também, em muitos círculos, a percepção, tingida de misoginia, de que é uma questão "menor", "parcial" ou "identitária". Enquanto isso, os dados revelam a carga de insegurança e sofrimento que a criminalização do aborto provoca nas mulheres.
Nenhum aborto é evitado com a criminalização. Seu resultado é medido em mais de 200 mil brasileiras hospitalizadas a cada ano, em consequência de abortamentos inseguros, com mais de cem mortes anuais. Há também o nascimento de crianças com sequelas devido ao uso incorreto (e portanto ineficaz) de medicamentos abortivos, como o misoprostol, às vezes falsificados ou vencidos. A experiência internacional mostra que a superação do tabu do aborto não garante apenas a segurança das mulheres.
Ela costuma ser acompanhada por ampliação da educação sexual e do conhecimento e disponibilidade de métodos anticoncepcionais —ou seja, a quantidade de intervenções tende a cair.
A ideia de que a batalha pelo aborto legal e seguro não pode ser vencida é o tipo da profecia que se autorrealiza. Se o embate não é travado, se nunca é a hora, a derrota é certa. O aborto foi legalizado em muitos lugares nos quais o peso da religião na vida social é tão grande ou até maior que no Brasil: Itália, Espanha, Portugal, Argentina, México.
A discussão é possível porque o aborto não é um tema estranho no Brasil. Ao contrário, faz parte da vivência cotidiana, em todas as camadas sociais. Há experiência que permite contestar a visão maliciosa e enviesada dos agentes político-religiosos. Será que as dezenas de milhões de brasileiras que já praticaram um abortamento clandestino se reconhecem no retrato que os conservadores fazem delas?
Dificilmente um brasileiro não tem, no seu círculo de convívio, pelo menos uma mulher que tenha passado pela experiência. São essas trabalhadoras, estudantes, mães, em sua maioria católicas ou evangélicas, que optam por interromper a gravidez indesejada, não a mítica "abortista" demoníaca da propaganda da direita. Mulheres que se veem diante de uma situação difícil e são chamadas a fazer escolhas igualmente complexas.
Porque este é o outro lado da questão do aborto, além da saúde pública. Sua criminalização nega, às mulheres, o estatuto de agentes morais plenas —como se, diante de determinados dilemas, elas tivessem que ser tuteladas por padres ou pastores, em vez de decidirem por si mesmas. Uma negação, também, da autonomia em relação ao próprio corpo, algo que, já para os filósofos que fundam o pensamento liberal, é a condição básica para o acesso aos direitos.
Além disso, a proibição da interrupção voluntária da gravidez, baseada na chantagem de lideranças com discurso religioso, sinaliza a incompletude da laicidade do Estado. E sem laicidade não há possibilidade de democracia: a tutela religiosa sobre determinadas pautas significa que a soberania popular está impedida de se expressar.
A descriminalização do aborto é uma demanda das mulheres, em luta por seus direitos, mas interessa a todos os democratas, inclusive os homens. Sem ela, metade da população está reduzida à condição de cidadãs de segunda categoria. É uma questão que precisa ser colocada em pauta e uma luta que, apoiada nos dados da realidade, no conhecimento científico e também na experiência social acumulada, tem todas as condições de obter êxito.