O relatório do novo marco fiscal apresentado nesta semana pelo deputado Cláudio Cajado (PP/BA) deixa, segundo especialistas em política fiscal, uma ponta solta em relação ao reajuste do Bolsa Família.
O texto como está permite que mesmo que o governo descumpra as metas de resultado primário nos anos de 2024 e 2025 (os dois primeiros da vigência da nova regra de gastos), poderá elevar o Bolsa Família em 2026, ano eleitoral, dando a reposição da inflação dos anos anteriores. Dessa forma, o gasto anual com o programa, segundo projeções, saltaria de cerca de R$ 170 bi por ano para algo entre R$ 185 bi e R$ 190 bi e o benefício médio do R$ 672 para cerca de R$ 735 no ano da disputa eleitoral.
Para isso, basta respeitar a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal), indicando uma fonte de custeio para o aumento. A elevação também não fere a Lei Eleitoral, pois trata-se de um reajuste, e não da criação de um novo benefício.
Diferente do salário mínimo, que no governo Lula deve ter uma política de valorização e ganho real (ainda em projeto de lei no Congresso) e ficou de fora da regra de gastos (não sujeito aos gatilhos, ou travas de gastos, podendo ter ganho real mesmo com descumprimento de metas), o Novo Bolsa Família ficou dentro da regra e não poderá ter ganho real em caso de descumprimento das metas. Mas pode ter a reposição da inflação. Proteger o salário mínimo e o Bolsa Família foi uma preocupação do presidente Lula no desenho da regra.
No Congresso, ainda não há definição clara sobre os reajustes do Bolsa Família. A medida provisória do novo programa, aprovada na comissão especial do Congresso (que ainda precisa passar pelos plenários das duas Casas), prevê que os valores "poderão ser corrigidos a cada intervalo de, no máximo, vinte e quatro meses, na forma estabelecida em regulamento, sendo vedada a sua redução". A regulamentação do reajuste do benefício ainda está em debate tanto no governo quanto no parlamento.
Para o ex-secretário do Tesouro e economista da Asa Investments, Jeferson Bittencourt, no relatório do Cajado, o Bolsa Família, apesar de ter ficado dentro da regra, e, portanto, passível da punição de não ter crescimento real, pode ter a reposição da inflação acumulada: "Após o segundo ano de descumprimento da meta, a despesa não pode ter crescimento real, mas em 2026 você pode dar toda a inflação acumulada, será uma baita de uma elevação".
Para Bittencourt, o tamanho do reajuste ainda não está claro, se será a inflação de um ano ou acumulada de todo o período sem correção: "Cabe interpretação, mas numa primeira análise entendo que pode ser toda a inflação acumulada do período sem correção. Nós estamos com uma previsão de inflação de 4,5% para 2024 e 2025, acumulando teríamos 9,2%. Arredondando um orçamento do Bolsa Família de R$ 170 bi para 2023, e que este orçamento não cresceria até 2025, como já aconteceu no passado, seria possível dar um incremento de R$ 15,6 bi em 2026, caso se confirmem as nossas projeções de inflação".
O valor médio do Bolsa Família em 2023 é de R$ 678. Se o benefício ficar dois anos sem reajuste e tiver a reposição da inflação, em 2026 passará para R$ 734 (seguindo as estimativas acima, que dependem da confirmação das projeções).
A regra de reposição da inflação não vale só para ano eleitoral. Após quaisquer dois anos de descumprimento seguido da meta, no terceiro não poderia ser dado aumento real para despesa obrigatória. Esse é o caso da Bolsa Família: é uma despesa obrigatória. Não pode ter aumento real, mas pode ter reajuste pela inflação.
A questão sensível é que a regra permite o aumento de um benefício importante em ano eleitoral mesmo que o governo não tenha cumprido as metas de resultado primário por dois anos.
Para Gabriel Leal de Barros, economista da Ryo Asset e ex-diretor do IFI (Instituto Fiscal Independente do Senado), a questão do reajuste para Bolsa Família mesmo em caso de descumprimento de metas é um problema: "Vemos que historicamente é muito fácil apontar uma fonte de receita para financiar essa expansão de gasto. Essa foi a prática do PT durante todo o tempo".
As contas de Barros batem com as de Bittencourt, a elevação levaria o benefício médio de R$ 672 para cerca de R$ 739 em 2026, e gasto total de R$ 186 bi, R$ 17 bi a mais do que em 2023, se as projeções de inflação se confirmarem.
O que diz o relator Cláudio Cajado
O relator apontou o que a regra prevê caso o governo queira dar reposição da inflação ao Bolsa Família mesmo sem ter cumprido a meta por dois anos seguidos: "O governo terá que explicar ao Congresso os motivos de descumprimento da meta. E, para o reajuste, indicar o valor, a fonte de onde virão os recursos". Para reposição da inflação não precisa apresentar Lei Complementar ao Congresso, necessária para aumento acima da inflação.
O que diz o ministério da Fazenda
Procurada, a pasta diz que o reajuste pela inflação do programa mesmo em caso de descumprimento da meta não tira a credibilidade da regra, além de não pressionar o conjunto das despesas, que sempre crescerá em termos reais. Completa dizendo que as metas são factíveis, sinalizando que o governo trabalha no cenário de que as metas sejam cumpridas.
Veja a íntegra da resposta enviada por e-mail à coluna: "Mesmo na hipótese de descumprimento da meta de primário, considerando a banda de tolerância, e acionamento de sanções, o governo poderia repor a inflação do Programa Bolsa Família conforme art. 167-A inciso VIII"
Esse reajuste não tira credibilidade da regra tendo em vista que a lógica do Regime Fiscal Sustentável se mantém: o crescimento dos gastos sempre será menor que o crescimento das receitas, garantindo a trajetória de melhora para o resultado primário. E, no caso de desvio em relação à trajetória de primário, existem mecanismos que deverão ser acionados para retornar à rota esperada.
Ademais, a correção pela inflação do Programa Bolsa Família não pressiona o conjunto das despesas que, de acordo com o projeto de lei, sempre crescerá em termos reais. Por fim, as metas de primário estabelecidas são factíveis e o governo segue tomando medidas para assegurar estabilidade e previsibilidade para as contas públicas".