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BILHETE DA MORTE - INVESTIGAÇÃO REVELA COMO PCC AMEAÇA JUÍZES
POLÍCIA
Publicado em 08/04/2022

Aquela sexta-feira, dia 2 de julho de 2021, foi agitada para Bruno Ghizzi, um jovem advogado criminalista de Campo Grande, então com 30 anos.

 

No dia anterior, o Gaeco, grupo do Ministério Público que investiga o crime organizado, solicitara à Justiça a transferência emergencial de um cliente seu.

 

O detento Edimar da Silva Santana, o Arqueiro, condenado por narcotráfico e uma das principais lideranças do PCC (Primeiro Comando da Capital) em Mato Grosso do Sul, seria movido da penitenciária Gameleira, estadual, para uma federal, ambas na capital do estado.

 

Com celas individuais e completa restrição ao uso de celular, as penitenciárias federais são o último lugar para onde os criminosos querem ir. Arqueiro não deixaria barato, e o  advogado Ghizzi seria fundamental na operação montada para demonstrar a irritação do traficante com a mudança.

 

Assinado por quatro promotores, o pedido do Ministério Público foi enviado naquele mesmo dia 1° de julho à Vara de Execuções Penais (VEP) de Campo Grande, cujo cartório era comandado pelo servidor Rodrigo Pereira da Silva Correia. Horas depois, o documento, sigiloso, estava nas mãos das advogadas Inaiza Herradon Ferreira e Paula Tatiane Monezzi – na mesma tarde, elas visitaram Arqueiro na Gameleira e repassaram ao preso o pedido do PCC.

 

Para o Gaeco, não há dúvida de que Correia, chefe do cartório, fora cooptado pela facção e vazou ilegalmente o documento assinado pelos promotores para os advogados Ghizzi, Ferreira e Monezzi. De acordo com a investigação, o chefe do cartório e os três advogados são integrantes da “sintonia dos gravatas”, como são denominados os profissionais que servem aos interesses criminosos da facção, entre eles o de atuar como  “pombo-correio” para levar demandas e tarefas do grupo de dentro para fora dos presídios e vice-versa.

 

Na noite de 2 de julho, Ghizzi foi até um hotel de Campo Grande jantar com o também advogado Marco Antônio Arantes de Paiva, que há anos atua na defesa de Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, maior liderança do PCC no país.

 

Segundo Ghizzi diria depois ao Gaeco, Paiva viajara a Mato Grosso do Sul com dois objetivos: transferir para um presídio de segurança menos rígida o narcotraficante boliviano Jesus Einar Lima Lobo Dorado, o Don Pulo, um dos principais fornecedores de cocaína para o PCC, detido na Gameleira; e receber, por meio de um detento que estivera com o chefe da facção na penitenciária federal de Brasília e agora estava detido em Campo Grande, o aval para um plano ousado de Arqueiro: em retaliação, o traficante queria assassinar o promotor Thalys Franklyn de Souza, um dos quatro signatários do pedido de sua transferência para o presídio federal. Nas normas internas do PCC, um ato tão extremado só seria possível com o aval de Marcola.

 

Logo após o jantar, Ghizzi mandou mensagem via WhatsApp para a advogada Monezzi. “Eu preciso conversar com você, mas a gente precisa conversar fora do celular. O bagulho é sério, eu estava agora à noite com uma pessoa foda […] Nós fomos conversar a respeito de outras situações.

 

” Minutos antes, Ghizzi acionou pelo aplicativo outro detento do PCC e disse qual seria essa outra situação: “Tô com informações privilegiadas / O Edimar [Arqueiro] mandou uma ordem pra matar um promotor.” (Dias antes, a Polícia Civil apreendera quatro fuzis e treze granadas em um dos imóveis de Arqueiro em Ponta Porã, fronteira com o Paraguai.)

 

Para a sorte do promotor Souza, um deslize de Ghizzi pôs tudo a perder. Na madrugada de 1ª de julho de 2021, o advogado utilizou uma senha entregue a ele pelo chefe do cartório da Vara de Execuções Penais e captou em um banco de dados do governo de Mato Grosso do Sul dados sigilosos, como endereço e telefones, do delegado da Polícia Civil Carlos Delano Gehring Leandro de Souza, que vinha investigando os “tribunais do crime” do PCC, julgamentos sumários, seguidos de assassinatos, dos acusados de trair a facção.

 

Dias depois, quando Delano constatou o acesso ao seu perfil, uma investigação interna da polícia chegou até Ghizzi. Pressionado, o advogado resolveu contar à Polícia Civil parte do que sabia sobre a “sintonia dos gravatas” do PCC em Mato Grosso do Sul e sobre os planos de assassinato do promotor.

Em poucos dias, o vídeo do depoimento-bomba caiu nas mãos do cartorário Correia, que vazou o conteúdo para os próprios “gravatas”. “Maize, eu fiquei em choque ontem à noite, a hora que o Rodrigo [Correia] me mandou”, disse a advogada Inaiza para a irmã, Maize – ambas são acusadas pelo Ministério Público de integrar a “sintonia dos gravatas”. “O cara decretou a morte dele […] Ele fala gravado, procurando a polícia pra entregar o PCC.”

 

O depoimento de Ghizzi motivou o imediato afastamento de Correia da VEP em Campo Grande e a abertura de sindicância contra ele. Recentemente, a comissão do Tribunal de Justiça que analisou o caso recomendou a demissão do servidor. “Ao conferir acesso de informações sigilosas a advogado do PCC, o servidor Rodrigo viabilizou informações de alto sigilo à organização criminosa, comprometendo a segurança de magistrados, servidores e demais colaboradores da Justiça, em especial daqueles que atuam no combate às organizações criminosas”, concluiu o parecer da comissão. A decisão final cabe agora ao Conselho Superior da Magistratura do TJ.

 

A delação do advogado também abortou os planos do PCC, acelerou a transferência de Arqueiro para a penitenciária federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte, e desencadeou uma intrincada investigação do Gaeco, a Operação Courrier (correspondência, em francês, em alusão ao papel de “carteiros” desempenhado pelos advogados da facção criminosa).

 

O promotor Souza não era o único a ter a cabeça a prêmio dentro da Gameleira em 2021. Em abril daquele ano, o clima era de forte tensão na penitenciária estadual, inaugurada em 2020. No dia 6 daquele mês, policiais penais apreenderam em uma das celas do pavilhão 1 dois bilhetes. Um deles, escrito por um preso integrante do PCC em Minas Gerais, ordenava o assassinato de uma juíza em Uberlândia e uma magistrada e uma promotora em Belo Horizonte – as três atuavam em investigação de esquemas de lavagem de dinheiro da facção no estado. “É pra cortar a juíza Andrea e a promotora que trabalha com ela, certo, o tempo já deu”, dizia o recado, chamado de “salve” na facção. Outro trazia o nome de vários servidores da Agepen (Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário) acompanhados da frase: “Cortar árvores e colocar fogo – todos já rastreados.”

 

 

 

Acima e abaixo, trechos de bilhete de integrante do PCC apreendido em abril de 2021 na Penitenciária Estadual Masculina de Gameleira, Campo Grande (MS), com plano para matar dois juízes de Minas Gerais: “Boa da parte do irmão Heitor, ai passa para o gravata levar essas ideias lá para o ‘amigão’ certo, é responsa, a fita é o seguinte é para meu afilhado Otávio mais o Anjo ir em Uberaba-MG lá na Flávia, e apresentar o código ‘MADRI-DIDI-ED’, ai retira lá 6 fura [fuzis], 20 abacaxi [granadas], 10 [pistolas]- 9 [mm] de 2 pente [carregadores], 1 [metralhadora] – 30 [mm], e 15 colete, e 3 mil jabuticaba [munições], e 6 motor [automóveis], ai monta o time e na cidade de Uberlândia-MG é para cortar o Juiz da Execução Lourenço Migliori da Fonceca e, vai em Belo Horizonte no Bairro Barro Preto no Forum 2° vara toxico. Lafay-eti, lá é pra cortar a Juiza Andréia e a Promotora que trabalha com ela certo, o tempo já deu é pra seguir adiante, já que foi mapeado, agora corta, é nossa resposta, corta tudo”- Foto: Reprodução/relatório GAECO

 

 

 

Os presos estavam revoltados com as restrições na rotina da Gameleira, principalmente a proibição de celulares (não há tomadas nas celas). Juízes de Mato Grosso do Sul começaram a receber cartas com ameaças de morte – certo dia, em 2021, um deles se deparou com uma bala calibre 357 em pé, na porta da garagem. Também circulava entre os detentos da penitenciária a informação de que o “partido” faria atentados contra o então governador de São Paulo, João Doria, e o diretor do Departamento Penitenciário do Paraná, Francisco Alberto Caricati (os informes do setor de inteligência da Agepen não detalham o motivo desses supostos planos).

 

Os projetos criminosos do PCC entravam e saíam dos presídios graças aos “gravatas”. Mesmo em presídios de segurança máxima, como a Gameleira, os criminosos acharam uma brecha nas restrições: ainda que não haja contato físico com visitantes, as conversas com os advogados não eram gravadas em áudio e vídeo (diferentemente dos encontros com familiares).

 

Assim, o preso escrevia o recado em um bilhete, mostrava para o advogado e este copiava a mensagem em outro papel. Para os criminosos, era o único meio de driblar a restrição a celulares dentro do presídio.

 

De acordo com o Ministério Público, há três níveis de “gravatas” a serviço do PCC: os de nível um são responsáveis por contatar as lideranças da facção e repassar as ordens para os membros em liberdade; os de nível dois cuidam da assistência jurídica aos detentos do “partido”; e os de nível três se restringem a acompanhar os detidos em flagrante na delegacia. Em Mato Grosso do Sul, segundo a investigação, a “sintonia dos gravatas” era chefiada por Cristhian Thomas Vieira, o Tio Doni, um narcotraficante baseado em Corumbá, fronteira com a Bolívia.

 

Éprovável que Bruno Ghizzi tenha entrado para a “sintonia” do PCC em meados de 2020, quando ainda era um profissional em início de carreira (seu registro na Ordem dos Advogados do Brasil data de 2015). “Dá uma atenção pros caras”, pediu a ele um integrante da facção em maio de 2020. “Informação / que vc passa / vale muito.” Segundo o Gaeco, Ghizzi cobrava 3 mil reais por recado transmitido (em alguns casos, recebia o pagamento em droga, segundo ele mesmo disse em mensagens de WhatsApp). O dinheiro era lavado na compra de joias, segundo o Gaeco.

Ghizzi logo demonstrou sua competência na nova função. Às 6h26 da manhã de 6 de outubro de 2020, ele enviou mensagens no aplicativo para integrantes do PCC alertando-os de uma operação do Gaeco para apreender celulares dentro dos presídios de Mato Grosso do Sul. “O tio tá com o telefone guardado / Vou guardar o meu”, respondeu o detento.

A investigação mostra ainda que o jovem advogado também abastecia o PCC com informações privilegiadas de transferências de presos, fornecidas pelo chefe do cartório da VEP – o servidor chegou a dar ao advogado a senha do sistema que monitorava essas transferências. “Esse é um dado muito sensível e deve ser mantido em sigilo, porque se um detento descobre que irá para um presídio federal antes do tempo, pode desencadear uma rebelião na cadeia em que está”, afirma um juiz criminal de Mato Grosso do Sul, que, com medo de represálias da facção, prefere não ser identificado. Em troca das informações, Correia recebia propina, paga por Ghizzi por meio de um funcionário do condomínio onde o advogado morava, em Campo Grande. “Jovem”, escreveu o chefe do cartório para Ghizzi pelo WhatsApp. “Arruma aí / um” – a frase é seguida pelo emoji de dois pequenos sacos de dinheiro. Ghizzi chegou a cobrar 40 mil do PCC para conseguir transferir um dos integrantes da facção para um presídio de Minas Gerais. Certa vez, um outro advogado ligado à facção disse a Ghizzi ter pago 8 mil reais de suborno para transferir um cliente para um presídio de Ponta Porã. 

 

Mensagem em que servidor pede dinheiro a advogado, incluída na investigação do Gaeco

 

 

De acordo com o Gaeco, os “gravatas” também corrompiam policiais penais do sistema penitenciário para transferir seus clientes de celas ou pavilhões ou alterar a ficha disciplinar do preso. Havia até uma tabela da propina: 1,5 mil reais para mudar um detento de cela e 6 mil reais para limpar sua ficha disciplinar. Em fevereiro de 2021, Ghizzi pediu para o policial penal Jonathas Wilson Moraes Candido apagar uma falta disciplinar de um preso para facilitar a sua soltura: “A ficha do cara já está boa, só tinha que alterar. Que aí o cartório vai lançar no sistema ela. E aí o cara vai embora.”

Após o depoimento de Ghizzi à Polícia Civil, Correia, chefe da Vara de Execuções Penais, passou a conviver com o medo constante de ser preso, conforme ele teria confidenciado às irmãs Ferreira: “Eu acordo cinco horas da manhã e fico olhando na janela se a polícia num vai bater aqui em casa, porque todo dia eu acho que vou ser preso […] Fico até sete e pouco ali na janela, aí eu falo ‘a polícia num vai mais vir aqui não’, aí eu durmo”, teria dito, na reprodução de Inaiza à irmã Maize, em diálogo interceptado com autorização judicial.

Esse dia finalmente chegou no início da manhã de 25 de março último. Foram presos preventivamente o servidor do TJ Rodrigo Correia, o policial penal Candido, os advogados Ghizzi, Inaiza Ferreira e Monezzi, além dos integrantes do PCC Tio Doni e Arqueiro. Todos devem ser denunciados à Justiça pelo Ministério Público nesta sexta-feira, 8, por organização criminosa, além de corrupção ativa e passiva.

A defesa de Monezzi disse ter pedido à Justiça prisão domiciliar para a advogada, com o argumento de que ela cuida de um filho de 7 anos, e que só irá se manifestar sobre o caso após a denúncia dos promotores; as defesas de Ghizzi e de Inaiza Ferreira não quiseram se pronunciar. “Tanto eu quanto minha irmã somos totalmente inocentes nessa situação”, disse Maize Ferreira, que também é investigada na Courrier. 

Paiva, advogado de Marcola, refuta as acusações do Gaeco. “Trata-se de gravíssima calúnia, baseada na palavra de um criminoso. Não falo com Marco Willians Herbas Camacho desde fevereiro de 2019 nem requisitei nenhum preso do PCC em estado do Mato Grosso. Prestei depoimento [ao Ministério Público] e estou ingressando com medida judicial para fazer cessar essa acusação.”

A defesa do servidor do TJ Rodrigo Correia informou, por meio de nota, “ter inteira convicção de que, ao longo das investigações, demonstrará a absoluta inocência” dele, “com o reestabelecimento da verdade”. “Reafirmamos que o sr. Rodrigo Pereira da Silva Correia, como funcionário dos quadros do poder Judiciário, confia plenamente na Justiça imparcial e na busca incessante pela verdade”, conclui a nota.

O advogado Mauro Deli Veiga, encarregado da defesa do policial penal, afirmou que Candido “não tinha competência funcional ou credenciais administrativas para alterar ou inserir dados nos sistemas de segurança”. A assessoria da Agepen não se pronunciou. Os advogados dos demais investigados não foram localizados pela piauí – o espaço segue aberto para se manifestarem.

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