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A cor proibida: como a rivalidade com o Palmeiras faz o Corinthians boicotar o verde
20/07/2020 08:31 em ESPORTE

Alface perde a cor no Carnaval e catracas ganham luz azul para eliminar cor do rival

 

Certa vez, Gustavo Maciel estava chegando para trabalhar no Parque São Jorge, sede social do Corinthians, e foi barrado na portaria. O motivo era um tanto singelo: o professor de educação física vestia uma blusa verde, a cor proibida, a cor do Palmeiras. O jeito foi ir até o carro e, mesmo com calor, colocar um moletom cinza por cima.

 

Corintiano roxo, Gustavo é só mais um torcedor apaixonado, mas tem uma característica peculiar que explica o vacilo na escolha da roupa: ele é daltônico.

 

Para Gustavo, lidar com a cor do maior rival é um desafio diário. Mas para muitos outros corintianos, é mais do que isso: é uma questão de honra. E que se expressa de várias formas: na vigilância sobre a roupa dos atletas, nos vidros e na catraca da Arena, no aviso em uma placa na sede da principal organizada do clube, até em uma alface pintada de amarelo.

 

 

São casos que abaixo e que reforçam uma tradição que ganha força em semanas como esta, de clássico contra o Palmeiras. Nesta quarta-feira, os rivais se enfrentam na Arena no retorno do Campeonato Paulista.

 

Verde? Que verde?

 

Visitamos Gustavo Maciel em seu trabalho em uma escola de Osasco, na Região Metropolitana de São Paulo. Ele trata o daltonismo (dificuldade ou incapacidade de diferenciar cores) com naturalidade e bom humor. E não sai de casa para jogos do Corinthians sem se certificar com algum conhecido de que não está – mesmo – usando verde.

 

 

– O Corinthians tem só uma regra com cor: não pode ter verde. Trabalhei por dois anos dentro do Parque São Jorge e por isso já não comprava roupa verde. Sempre que ia comprar, perguntava para alguém que estivesse comigo, até mesmo para o vendedor, se não era mesmo verde. Morria de medo de um dia chegar ao estádio vestindo verde. Eu sempre tento evitar, principalmente no trabalho. Nesse dia no Parque São Jorge, eu estava com uma camisa verde, calor, verão em São Paulo. E, obviamente, o porteiro me barrou. Trabalhei debaixo do sol o dia inteiro de moletom – relembra.

 

 

Vidro verde? Gramado preto?

 

 

 

De maio de 2014 a março de 2020, a Arena abrigou 200 jogos do Corinthians. Construída para ser sede da Copa do Mundo no Brasil, foi projetada para oferecer conforto ao elenco e à torcida – e medo aos rivais. Mas adequá-la aos padrões do Timão não foi tão simples assim.

 

Anos antes da construção, o projeto arquitetônico virou manchete: os vidros envoltos no estádio tinham uma tonalidade esverdeada, algo comum na maioria desse tipo de material. Uma reportagem da Folha de S.Paulo, questionando o tom dos vidros, gerou rebuliço no clube.

 

 

– O vidro saiu meio verde no projeto porque todo vidro normal é esverdeado. Quando saiu a matéria dizendo que o estádio do Corinthians seria verde e branco, foi um caos. Chamamos um consultor de vidro, um belga, que explicou que branco mesmo só tinha um tipo específico. Uma empresa japonesa conseguiu fazer para nós uma permuta desse modelo específico. O vidro passou pela França, onde foi tratado e também pela Itália para ficar ainda mais branco. Passamos um produto, 90% desse vidro foi pintado de branco. Foi uma operação que levou dois anos – conta Aníbal Coutinho, arquiteto líder do projeto do estádio.

 

Houve um controle rígido de qualidade dos vidros para o estádio. Na França, eles foram produzidos em tamanhos especiais, cortados rigorosamente sob medida, e depois encaminhados para a Itália. A permuta com a empresa japonesa, segundo Aníbal, permitiu ao Corinthians não gastar menos do que o previsto, mesmo com o processo detalhado.

 

Quanto maior a espessura do vidro em modelo transparente, mais perceptível é uma coloração esverdeada. Por isso, houve a necessidade da pintura e do tratamento minucioso.

 

 

Resolvido o problema do vidro, outros apareceram pelo caminho. Cogitou-se um gramado em preto, o que não seria permitido pela Fifa e tampouco viável para o clube. Mesmo assim, a lateral do campo da Arena é, sim, em preto e branco. Nas catracas, o verde de aprovação da entrada dos torcedores foi substituído pelo azul.

 

– A verdade é que nós (arquitetos e engenheiros) nunca cogitamos, mas houve, sim, perguntas sobre a possibilidade de implantar o gramado em preto. Além de não ser permitido, ficaria horrível para a transmissão, por exemplo.

 

 

Gaviões da Fiel e Camisa Verde e Branco?

 

Principal torcida organizada do Corinthians, a Gaviões da Fiel é também uma escola de samba do grupo especial de São Paulo, com atividades iniciadas em agosto de 1988. Antes disso, de 1976 até 88, os Gaviões formavam um bloco carnavalesco. Nessa transformação, mora uma curiosidade que envolve a cor do rival.

 

Acontece que a madrinha de batismo da Gaviões foi a escola Camisa e Verde Branco, tradicional agremiação da Barra Funda. Isso mesmo: verde e branco.

 

– Muita gente pode achar estranho, pela cor, pela rivalidade com o Palmeiras, mas nossa madrinha foi, sim, a Camisa Verde e Branco, depois de a Vai-Vai ser madrinha na época de bloco. Chamamos a Camisa porque, à época, a torcida adversária (do Palmeiras) não ocupava espaço nenhum no samba e a gente não poderia permitir que se dissessem participantes dessa história. A Camisa é de uma família de corintianos... Corintianos de vir à quadra. Chamamos para que não criasse isso de que Vai-Vai era Corinthians e a Camisa era Palmeiras. A Camisa Verde e Branco também é Corinthians – garante Ernesto Teixeira, intérprete oficial da Gaviões da Fiel desde 1985.

 

 

Mas e como fica a questão das cores?

 

– O verde não é condição do Palmeiras. Tem rivalidade no futebol, mas o verde não pertence a eles. É a cor da natureza. Claro que teve discussão na época, mas o verde da Camisa não é do Palmeiras – completa Ernesto.

 

O grupo carnavalesco da Camisa começou as atividades em 1914, justamente ano de fundação do Palmeiras. Embora existam coincidências, de fato não há ligação entre o rival do Timão e a escola de samba. Mas isso não impede que ocorram confusões. Em 1995, no primeiro título da Gaviões, o pavilhão da Camisa Verde e Branco visitou a quadra para comemorar, mas acabou barrado na porta. O problema acabou resolvido, e o verde pôde estar mais uma vez presente na quadra.

 

 

 

Alface amarela?

 

Apesar do elo com uma escola verde e branca, a Gaviões não usa a cor do Palmeiras em seus desfiles. A regra é seguida há anos e não tem previsão de ser deixada para trás. Isso, é claro, já gerou situações curiosas. A mais emblemática tem a ver com uma folha de alface.

 

– Uma situação inusitada foi no penúltimo carnaval como bloco, em 1987. O enredo era "Do Jeito que Vier eu Traço". Fazia uma crítica ao estrangeirismo, sanduíche, etc. Tinha um carro alegórico que era um X-salada. Os carros foram feitos na quadra, fizeram o alface verde. Viemos na madrugada de sexta para sábado com spray e pintamos de amarelo. Foi um alface meio passado (risos), mas ganhamos o carnaval – brinca Ernesto.

 

– Muita gente questiona esse fato de não usar o verde. É uma característica que fazemos questão de manter. E um desafio maior para o carnavalesco, que precisa suprir a ausência da cor. Antigamente, uma escola azul e branca prevalecia suas cores no desfile. Com o passar dos anos, foi autorizado a usar outras cores neutras. Hoje, pode usar tudo. Se tirar o abre-alas de qualquer escola, você não sabe mais qual é, porque são todas as cores. Mas os Gaviões você saberá reconhecer – completa.

 

 

E os jogadores...

 

Se para alguns torcedores essa rejeição ao verde não passa de bobeira, para outros é caso a ser levado a sério. Recém-contratado pelo Corinthians, Jô mal chegou e já teve que se explicar por treinar em casa com um tênis amarelo (ou seria verde limão?).

 

Problemas desse tipo aconteceram outras vezes. Em 2011, a diretoria pediu a Adriano para que não usasse mais um modelo amarelo e verde. Cássio não admitiu, mas em período com a seleção brasileira, no ano passado, evitou ao máximo usar a camisa verde de treino dos goleiros.

 

Neste ano, quando disputou partida contra o Guaraní, em Assunção, no Paraguai, o elenco do Corinthians recebeu a visita do ex-zagueiro paraguaio Gamarra no hotel. O clube gravou com ele um vídeo especial, mas tudo em preto e branco. Motivo: o ex-zagueiro vestia uma camisa polo verde.

 

Veja a cor original da camisa de Gamarra:

 

 

Na camisa

 

Nem quando o motivo é nobre o verde aparece na camisa do Corinthians . Em 2016, muitos clubes brasileiros fizeram homenagens à Chapecoense após o acidente aéreo que matou 71 pessoas em viagem à Colômbia. Houve uma sugestão para que se incluísse o verde da Chape na camisa do Timão, com direito a movimento forte nas redes sociais. Mas não aconteceu. O clube acabou estampando a conta bancária e o escudo da Chape, mas em preto.

 

Anos antes, no Mundial de Clubes de 2012, quando o Timão se sagrou campeão ao vencer o Chelsea, não teve jeito: o patch (selo) da Fifa era verde. Naquele mesmo jogo, o Timão conseguiu convencer o clube inglês a usar os coletes verdes de reserva em seu lugar.

 

 

Ainda antes, em 2002, o Corinthians assinou contrato de patrocínio com a Pepsi, que queria promover seu refrigerante com "um toque de limão". Mas qual a cor do limão? Na imagem abaixo, não parece exatamente verde.

 

 

No ano passado, foram retiradas do mercado camisas de goleiro do Corinthians feitas pela Nike com um detalhe em verde. À época, o clube tratou o caso como um "equívoco". O uniforme era de 2017, chegou a ser entregue ao departamento de futebol, mas acabou vetado. Em 2019, apareceu sendo vendido em lojas outlet da marca esportiva.

 

 

 

 

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