Com uma tornozeleira eletrônica presa ao corpo, Noelza Soares, 56, se desdobra em cabeleireira, manicure e depiladora para atender suas clientes em um salão de beleza em Pirajá, bairro da periferia de Salvador.
Fecha as portas antes das 19h, horário em que impreterivelmente tem que estar em casa —ela cumpre medidas cautelares na Justiça pelos ataques golpistas de 8 de janeiro de 2023 em Brasília, protagonizados por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Mesmo com as restrições, vai concorrer à Câmara Municipal de Salvador pelo PL com um discurso que inclui questionamentos às urnas eletrônicas: "Para você ver como é contraditório, né? Mas minha candidatura é um desafio para mim mesma, é algo particular entre mim e Deus."
Levantamento da Folha aponta que ao menos 48 dos 1.406 presos por envolvimento em atos de terrorismo e na destruição de prédios públicos no 8 de janeiro vão concorrer nas eleições municipais de 2024. Eles fazem parte do grupo que foi detido em Brasília após os ataques ao Congresso Nacional, Palácio do Planalto e STF (Supremo Tribunal Federal).
Serão 2 candidatos a prefeito, 1 a vice-prefeito e 45 postulantes às Câmaras Municipais espalhados por 44 cidades brasileiras. Dentre eles, 14 adotaram o adjetivo "patriota" em seus nomes de urnas ao se registrarem na Justiça Eleitoral. Um deles foi mais direto e se apresentou como "patriota preso".
Entre os candidatos, 16 vão concorrer pelo PL de Bolsonaro. Os demais estão espalhados em partidos de direita como Republicanos, PP e Novo, nanicos como o DC, PMB e Mobiliza e até mesmo legendas da base do governo Lula (PT), caso do União Brasil e do MDB.
Os candidatos que enfrentam as urnas ainda não foram julgados nem condenados pelo STF, corte que concentra os casos ligados ao 8 de janeiro. Por isso, não têm restrições para disputar as eleições.
"Não é muito comum que a gente tenha presos preventivos que sejam candidatos. A gente está vendo um cenário novo que vai dar muita margem para discussão", avalia o advogado João Marcos Pedra, secretário-geral da Comissão de Direito Eleitoral da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).
Ele explica que, caso os eleitos sejam futuramente condenados, a perda do mandato também não é automática. No caso dos vereadores, por exemplo, a Constituição prevê que a decisão passe pelo Poder Legislativo.
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Diferente da Lei da Ficha Limpa —que torna inelegíveis candidatos condenados por crimes contra a administração pública já em segunda instância—, os presos no 8 de janeiro só perderão os direitos políticos após trânsito em julgado, ou seja, quando a sentença é definitiva e sem direito a recurso.
Com nove candidaturas, São Paulo é o estado que terá mais candidatos entre os presos do 8 de janeiro. Dentre eles está a Professora Sheila Mantovanni (Mobiliza), postulante à Prefeitura de Mogi das Cruzes (48 km da capital).
A candidata se define como conservadora, católica e armamentista, mas diz que nunca defendeu a intervenção militar. Afirma que participou do 8 de janeiro para pedir um esclarecimento do Exército sobre o processo eleitoral, que terminou com a derrota de Bolsonaro nas urnas.
Sheila ficou detida por quatro meses na Penitenciária Feminina do Distrito Federal, conhecida como Colmeia, e usou tornozeleira por onze meses. Foi liberada das acusações de incitação ao crime e associação criminosa após assinar o acordo de não persecução penal concedido pelo ministro Alexandre de Moraes, mecanismo que evita que o denunciado perca a condição de réu primário.
Ela ainda tem os bens bloqueados pela Justiça, já que responde a uma ação civil movida pela (AGU) Advocacia-Geral da União contra suspeitos de financiar o fretamento de ônibus para os atos. A candidata nega que tenha realizado pagamentos, e diz que seu nome apenas consta na nota fiscal.
Fora da cadeia, Sheila decidiu se lançar candidata a prefeita: "Eu vi a proposta que o PL tinha em Mogi e achei que a candidata que estava vindo [Mara Bertaioli] não representava os valores que a gente do 8 de janeiro defende."
Entre as críticas ao PL, Sheila aponta que o presidente da legenda, Valdemar Costa Neto, "teve alguns problemas, foi investigado". Em um vídeo nas redes sociais, também diz que o PL não pode ser considerado de direita, uma vez que fez coligações com PT em 85 cidades nestas eleições.
Dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) apontam, no entanto, que o Mobiliza fez coligações com o PT em mais municípios: 87 no total.
Também concorre ao cargo de prefeito Fabiano Silva (DC), candidato em Itajaí (103 km de Florianópolis). Procurado por meio do partido, ele não se manifestou.