Um documento com 17 páginas totalmente tarjadas. Foi assim que a Caixa Econômica Federal respondeu a uma determinação da CGU (Controladoria-Geral da União) para dar transparência a informações solicitadas pelo UOL sobre suspeitas de uso político do crédito consignado do Auxílio Brasil.
As tarjas só podem ser removidas pela Caixa. Mas o UOL teve acesso aos documentos originais, sem as ocultações. A atual gestão do banco — que mantém dirigentes que operaram a distribuição do consignado durante o processo eleitoral — estava tentando esconder comunicações sobre riscos e perdas com a linha de crédito.
Os trechos que foram tarjados revelam que o consignado do Auxílio Brasil foi iniciado aos atropelos, com dúvidas e pendências que representavam riscos financeiros e jurídicos. Os demais grandes bancos não aceitaram participar, só a Caixa aderiu. Os prejuízos começaram a aparecer já em novembro.
As informações reforçam as suspeitas de uso político do consignado pela Caixa para favorecer Bolsonaro nas eleições. O então presidente tinha menor intenção de voto entre eleitores de baixa renda, segundo as pesquisas da época.
Em fevereiro, o UOL revelou que a Caixa cortou o consignado após a derrota de Bolsonaro. Do total de R$ 7,6 bilhões liberados em 2022 pelo banco, 99% se concentraram entre o primeiro e o segundo turno.
Também em fevereiro, o UOL pediu, pela Lei de Acesso à Informação, documentos sobre o corte do consignado. Solicitou ainda comunicações trocadas entre a Caixa e órgãos do governo federal sobre o tema, para entender como foi o processo de tomada de decisão. O banco estatal vem se negando, desde então, a fornecer as informações.
Em julho, a CGU determinou que a Caixa enviasse as comunicações. Na semana passada, o banco respondeu com o documento tarjado. Algumas páginas foram completamente ocultadas. Outras mostram apenas palavras sem qualquer significado. A página 12, por exemplo, diz:
XXX solicitamos possibilitar XXX Considerando manifestação prévia sobre XXX solicitamos XXX posto que entendemos XXX
Karla Ferreira, superintendente da Caixa, em e-mail de 10 de novembro de 2022, totalmente tarjado pelo banco
Já os documentos sem tarja abordam, sem rodeios, a falta de discussão para implementar rapidamente o consignado em outubro de 2022.
As discussões sobre o tema não foram realizadas, em grande parte dada a necessidade de priorização de ações referentes à implementação da política pública.
Ministério da Cidadania, em e-mail para a Caixa em 7 de outubro de 2022
A reportagem questionou a Caixa sobre as tarjas, mas o banco não se manifestou.
Veja aqui o documento tarjado da Caixa.
O que a Caixa tentou esconder com as tarjas
1) "Risco imprevisível às instituições financeiras"
Em 7 de outubro de 2022, cinco dias após o primeiro turno e três dias antes do início da liberação do consignado, a gerente nacional de consignado da Caixa enviou um e-mail para o governo Bolsonaro, intitulado "Alterações - Portaria 816 do Ministério da Cidadania".
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A portaria, que havia sido publicada em 26 de setembro, permitia o início do consignado do Auxílio Brasil.
A Caixa apontou oito problemas na portaria, que precisariam ser alterados.
Um deles era um erro crasso: a portaria fazia referência a uma lei errada. Citava a legislação do consignado para aposentados e pensionistas do INSS, que autoriza o desconto de até 35% dos rendimentos. Mas, para o consignado do Auxílio Brasil, a lei era outra, e permitia o desconto de até 40%. Foi preciso editar uma portaria complementar para fazer a correção.
Outros problemas graves não foram solucionados. A portaria dizia que, se um tomador do empréstimo tivesse o Auxílio cancelado por irregularidade, os bancos deveriam devolver para o Estado todas as parcelas do consignado já pagas.
A Caixa reclamava que o Ministério da Cidadania não tinha dado informações suficientes sobre situações que levariam ao cancelamento dos benefícios.
A possibilidade de glosa [cancelamento] sem referidos detalhamentos impõe risco imprevisível às instituições financeiras e de difícil mensuração em relação à perda que pode advir do processo, uma vez que não há segurança, ainda, a partir dos dados disponibilizados.