Mais de 50 mil franceses tomaram as ruas do país na noite desta quinta-feira (16) em reação à decisão do governo Emmanuel Macron de impor a reforma da Previdência sem a chancela da Assembleia Nacional. Protestos foram registrados em 25 cidades pelo país, e dessas, ao menos quatro tiveram confrontos entre manifestantes e a polícia.
Os embates contrastam com o caráter eminentemente pacífico dos atos que vinham ocorrendo desde o anúncio da reforma, em janeiro, e representam o maior desafio a Macron desde o movimento dos coletes amarelos que marcou seu primeiro mandato.
Manifestantes entram em confronto com a polícia em protesto contra imposição da reforma da Previdência em Nantes, no oeste da França - Loic Venance - 16.mar.23/AFP
O Ministério do Interior francês informou que 310 pessoas foram presas nos protestos —258 delas só em Paris, onde cerca de 10 mil manifestantes ocuparam a praça da Concórdia, perto da Assembleia. As forças de segurança usaram bombas de gás lacrimogêneo e jatos de água para dispersar a multidão, que ateou fogo a veículos e a latas de lixo.
Incidentes do tipo também foram registrados nas cidades de Rennes e Nantes, no oeste do país, e em Lyon, no leste. Cinquenta e quatro policiais ficaram feridos.
Nesta sexta-feira, um terço das pessoas detidas já haviam sido liberadas, segundo informou o Ministério Público de Paris à emissora francesa BFM —entre eles, Jerome Rodrigues, figura emblemática dos protestos dos coletes amarelos.
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"A oposição é legítima, as manifestações são legítimas, a desordem não", afirmou o ministro do Interior, Gérald Darmanin, em entrevista à rádio RTL, antes de advertir que o governo não permitirá "manifestações espontâneas".
A despeito dos alertas, os atos continuaram nesta sexta-feira (17). Na capital, quase 200 manifestantes bloquearam um anel rodoviário por meia hora durante a manhã. Várias escolas também tiveram suas entradas bloqueadas, e sindicatos de professores convocaram novas greves para a semana que vem, às vésperas das provas específicas do Bac, o vestibular unificado francês.
Novas demonstrações na praça da Concórdia foram marcadas para as 18h da tarde do horário local (14h do horário de Brasília), e sindicatos de setores industriais programaram uma greve nacional para a quinta-feira, em uma tentativa de forçar Macron a recuar da reforma.
A decisão do governo de recorrer ao artigo 49.3 da Constituição para aumentar a idade de aposentadoria de 62 para 64 anos, sem submeter a medida ao voto dos deputados, só fez crescer a fúria da população, conhecida pela defesa ferrenha de direitos sociais, diante da reforma previdenciária. Um levantamento da Toluna Harris Interactive para a rádio RTL indica que oito entre dez franceses desaprovaram a estratégia, e 65% da população quer que greves e protestos continuem.
O dispositivo constitucional, visto como pouco democrático, foi uma aposta radical do governo diante das incertezas sobre a votação na Casa de uma reforma considerada crucial para as finanças públicas e para a agenda reformista de Macron, mas altamente contestada por deputados e pela população.
Desde que foi apresentado pela primeira-ministra, em janeiro deste ano, o projeto provocou a articulação de uma junta intersindical inédita nos últimos 12 anos —mesmo que a idade atual de aposentadoria na França seja uma das mais baixas da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), o clube de países ricos.
Foi o gatilho para uma campanha de greves e manifestações contra o texto e levou milhões de franceses a protestar, paralisando serviços de coleta de lixo, educação, transporte público e geração de energia.
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Uma aliança multipartidária que une siglas do centro e da esquerda apresentou na manhã da sexta uma moção de censura ao governo Macron, a ser votada no fim de semana ou, no mais tardar, na segunda-feira.
O instrumento tem o poder de derrubar a primeira-ministra, Elizabeth Borne, e rejeitar o texto sobre o qual ela evocou sua responsabilidade ao impor aprovação automática —neste caso, a reforma da Previdência.
A moção precisa, no entanto, da aprovação da maioria absoluta dos parlamentares. E embora Macron tenha perdido essa maioria nas eleições passadas, as chances de que a medida avance são pequenas —ela exigiria a improvável união de deputados de todos os espectros, do mais à esquerda ao mais à direita.
Por fim, mesmo se a moção for aprovada no Parlamento, o presidente francês poderia em reação reconduzir a primeira-ministra ao cargo ou mesmo dissolver a Assembleia Nacional.
Desde 1958, moções de censura não têm obtido votos suficientes para serem efetivadas, de modo que se tornaram um meio simbólico de manifestação do repúdio de deputados à ausência de debate parlamentar.
Protestos na França desafiam reforma da Previdência de Macron
Além de elevar a idade mínima para aposentadoria, a reforma da Previdência também prolonga os anos de contribuição dos franceses para acesso à pensão integral, de 42 para 43 anos, já a partir de 2027.
A reformulação também mexe nos chamados regimes especiais —aqueles dedicados a atividades consideradas mais penosas, como as de garis, bombeiros, policiais e enfermeiros, que podem se aposentar antes das demais categorias, teriam a idade mínima elevada de 57 para 59 anos.
Segundo o governo, a reforma vai representar uma economia de € 18 bilhões (cerca de R$ 101 bilhões). Ela representa uma aproximação da França aos parâmetros adotados por outros países da União Europeia, que já elevaram suas idades mínimas de aposentadoria. Este movimento é repudiado pelos franceses, que prezam a qualidade de seu sistema público de segurança social.
A França tem o maior gasto governamental do planeta, equivalente a 55% do Produto Interno Bruto (PIB). Durante a fase mais crítica da pandemia, essa fatia chegou aos 60%, segundo dados do Fundo Monetário Internacional (FMI). No Brasil, os gastos do governo são de 45%.
O gasto francês com o sistema de aposentadorias é o maior do mundo rico, atrás apenas de Itália e Grécia, e consome cerca de 14% do PIB —montante que se aproxima do desembolso brasileiro somando-se União, estados e municípios.