Procurada pelo UOL, a Polícia Civil corrobora a informação do Flamengo. Diz que iniciou às 9h30 do dia do incêndio a coleta de provas periciais e concluiu-a no mesmo dia. A remoção de fios e disjuntor, em data posterior, não teria atrapalhado o trabalho dos peritos.
Bezerra insiste que, nos dias em que esteve lá, viu policiais trabalhando na cena. Em reportagem publicada em 14 de fevereiro, policiais ainda periciavam o local.
Em depoimento à CPI do incêndio no Ninho, na Alerj, Victor Satiro de Medeiros, um dos peritos que assina o laudo final da polícia, também dá uma versão destoante:
"A gente ficou uns 15 a 20 dias trabalhando no local, em seis pessoas."
O UOL recorreu ao perito Nelson Massini para analisar as denúncias. Diz o perito:
Causa muita estranheza a velocidade com que essa perícia foi realizada. Trata-se de um ambiente muito complexo, com uma série de itens para serem examinados. E a perícia foi realizada em apenas 8 horas. Pode-se dizer que foi de maneira muito apressada.
Para Massini, a remoção de fios relatada por Bezerra é "fato grave, que pode ter alterado o local dos fatos e levado a possível erro na apuração da polícia técnica científica".
O delegado Márcio Petra, responsável pela condução do inquérito do caso à época, mostrou-se surpreso ao ser informado pelo UOL do relato de Bezerra.
"Esses fatos (...) traduzem, em tese, a prática de um crime, que deve ser apurado, caso a testemunha citada declare, desta forma, em sede policial, ministerial ou judicial. Somente o perito poderia avaliar essa hipótese em cotejo com os demais elementos colacionados aos autos", declarou Petra em mensagem à reportagem.
A culpa foi do ar
Athila Paixão, Arthur Vinícius de Barros Silva Freitas, Bernardo Pisetta, Christian Esmério, Gedson Santos, Jorge Eduardo Santos, Pablo Henrique da Silva Matos, Rykelmo de Souza Vianna, Samuel Thomas Rosa e Vitor Isaías, jogadores da base do Flamengo com idades entre 12 a 15 anos, morreram no incêndio que transformou os seis contêineres que serviam como quartos em um grande forno.
A tragédia teve 16 sobreviventes. Três ainda atuam no Rubro-negro: o goleiro Francisco Dyogo, o volante Rayan Lucas e o zagueiro Johnata Ventura, que teve 35% do corpo queimado e voltou aos gramados mais de dois anos após o ocorrido.
Desde as primeiras horas, a versão preliminar para o incêndio —classificado ainda naquela manhã como "a maior tragédia da história do Flamengo" pelo presidente do clube, Rodolfo Landim— era a de que ele havia sido provocado pelo mau funcionamento de um ar-condicionado instalado em um dos contêineres.
O motivo coincide com o apontado na conclusão do laudo dos peritos da Polícia Civil, que embasou o indiciamento de oito pessoas, entre dirigentes do Flamengo, executivos da empresa que fornecia os contêineres-dormitórios para o clube e um técnico de refrigeração.
O que diz a versão oficial:
O incêndio teve "como foco ígneo único e determinado um fenômeno termo-elétrico no interior do aparelho de ar condicionado do quarto 06", que se alastrou pelas paredes dos contêineres devido às "propriedades físicas e químicas dos núcleos dos painéis".
O documento da polícia inclui diversas fotos de disjuntores e fios com emendas mal feitas ou "torção inadequada", mas não estabelece, em sua conclusão, relação direta entre esses problemas e as causas do incêndio.
Na história contada a seguir, o engenheiro José Augusto Bezerra afirma que tais detalhes não poderiam ser ignorados.
Alexandre Vidal/Flamengo
O CEO do Flamengo, Reinaldo Belotti
"Arranca isso tudo". O que o engenheiro diz que viu e ouviu
José Augusto Bezerra teve diversas conversas com a reportagem do UOL ao longo dos últimos meses para explicar suas denúncias.
O engenheiro relata que, na tarde de 8 de fevereiro de 2019, ainda digeria as notícias sobre o incêndio no Ninho quando seu celular tocou.
Era Reinaldo Belloti, CEO do Flamengo. Rubro-negro daqueles que carregam o escudo do clube na capinha do celular, Bezerra se surpreendeu.
"Ele sabia o meu nome, conhecia a minha empresa e falou: 'Olha, você foi indicado para vir aqui no Flamengo fazer o laudo do acidente. A gente precisa de um laudo particular'."
O CEO tinha urgência. Recebeu o engenheiro no Ninho do Urubu já na manhã seguinte, ainda diante dos escombros do que tinha restado do alojamento após o incêndio.
"Cara, conforme você for vendo, o que achar de muito grave você me chama", disse Belotti, ainda segundo Bezerra.
"A área estava isolada, com fitas, com tudo. Mas, por trás, tinha uma porta que não tinha fita, não estava isolada. Então eu entrei por lá", relata.
O engenheiro conta que passou a manhã e a tarde vistoriando o local. Tirou centenas de fotos e fez anotações. No dia seguinte, voltou para tentar esclarecer algumas dúvidas sobre as imagens que tirou atrás do alojamento.
"Tinha uma caixa de alvenaria, a caixa de distribuição de energia. Tinha um disjuntor ali que estava completamente mal dimensionado, completamente errado."
Na sequência, Bezerra notou uma fiação que saía desse disjuntor e levava energia para os contêineres pelo forro do alojamento.
Os fios estavam fora do padrão, desprotegidos e com emendas aparentes, denuncia:
"O cabo era errado. O disjuntor era errado. Estava tudo errado. Aí eu chamei o Reinaldo e falei: 'Isso aqui é uma coisa muito grave'."
A reação de Belotti foi imediata, conta o engenheiro:
Ele chamou um cara lá, um funcionário. Mostrei onde estava o disjuntor, inclusive com os fios ainda estavam todos queimados entrando dentro do alojamento. E aí ele [Belotti] falou: 'Arranca isso tudo'.
Bezerra diz que viu os fios que ligavam a caixa de distribuição ao contêiner sendo arrancados, mas que não fez nada. "Eu não coloquei a mão em nada. Não comentei nada também porque ali eu sou a parte mais fraca."
"Tipo, óbvio, tenho 41 anos de idade, não sou bobo. Ele quis apagar algumas coisas."
Bezerra forneceu as fotos abaixo à reportagem para indicar o antes e depois do episódio narrado.