"Acabou a era militar, são novos tempos. Esses cargos serão ocupados por indígenas ou por pessoas não indígenas indicadas pelos indígenas", disse à Folha em sua primeira entrevista após ser anunciada para a Esplanada.
Poucas horas após a divulgação da escolha, ela recebeu descalça a reportagem em um dos prédios hoje ocupados pela Economia e que abrigará sua pasta a partir de 1º de janeiro.
Ela disse que não vai mudar sua posição contrária ao agronegócio e à mineração —"com esse modelo totalmente predatório, ninguém vai muito longe"—, mas que buscará conversar para construir uma nova consciência para o sistema de produção do Brasil.
"Isso precisa começar por nós, que sofremos os primeiros impactos da negação da demarcação de terra em prol de atender os setores do agronegócio e da mineração", completou.
O que já está definido sobre o Ministério dos Povos Indígenas? A gente não teve muito tempo para poder pensar. Temos uma estrutura que foi desenhada pelo grupo de trabalho, com todo mundo que participou, consensuada com as representações.
Para nós, começar já com essa estrutura física [um andar em um prédio ministerial], até isso a gente imaginava que ia ser difícil de ter logo no início. Mas agora a gente já começa com uma estrutura física garantida e vamos ter mais ou menos 140 servidores que serão remanejados do serviço público ou os que vão ser nomeados por nós.
Como vai ser a organização da pasta? Vão ser três secretarias: uma de promoção territorial, uma de gestão —que a gente pretende que vá implementar a Pngati [Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas] e todas as políticas de proteção territorial— e uma de articulação institucional, porque o ministério vai trabalhar muito transversalmente com outras pastas.
A Funai segue como uma autarquia, agora sob esse ministério, e teremos também uma ouvidoria indígena. Queremos recriar, já no início da gestão, o Conselho Nacional de Política Indígena, que terá representações indígenas e dos ministérios.
E qual vai ser o orçamento da pasta? Ontem [quarta], a gente conversou com o presidente Lula e ele disse para conversarmos direto com o Planejamento, Economia e Casa Civil. Eles vão destinar um valor como aditivo para o funcionamento do ministério. Será conversado para a gente pensar minimamente como é que a gente começa o ano que vem.
E vamos trabalhar também na construção do fundo de biomas indígena, o FBI, que não vai fazer parte da estrutura do ministério, mas vai estar vinculado. O fundo vai captar dinheiro internacional, principalmente, para implementar as nossas ações para além do orçamento público, nas cinco regiões do país.
Foi considerado usar o orçamento da Funai para o ministério. Isso mudou? O orçamento da Funai hoje é de cerca de R$ 800 milhões, e já é apertado. Estamos buscando um aditivo, por crédito suplementar, que é para o funcionamento do ministério.
Além disso, temos a missão de articular com o Ministério da Saúde a recomposição orçamentária da Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena], porque hoje há um risco muito grande de um colapso na saúde indígena.
Quando serão revelados os primeiros nomes da pasta? Nós temos apontamentos feitos pelo nosso grupo de trabalho de governança indígena, o próximo passo é definir. Vamos trabalhar de forma que contemple as cinco regiões do Brasil e os seis biomas, considerando organizações regionais e esse modelo organizacional do movimento indígena.
Também vamos discutir o nome para a Sesai e a gente propôs a criação de uma secretaria especial para a educação indígena, no MEC. Vamos ver se a Educação vai acatar.
Quais serão as primeiras ações do ministério? Logo no início queremos fazer visitas nas áreas em situação mais graves, como o território yanomami, que tem uma estrada clandestina de 150 km transportando garimpeiros, com máquinas pesadas, conivência de empresários e de políticos.
Vamos buscar uma ação transversal do ministério indígena com Ministério da Justiça e Polícia Federal, para promover a retirada desses invasores.
Tem também a situação de garimpo legal no território munduruku, que é muito grave, e Mato Grosso do Sul, que vive uma situação de uma violência absurda, com assassinatos, mortes na estrada ou mesmo suicídio em razão das condições muito precárias do território, que não tem onde plantar.
E como fica o processo de demarcação de terras indígenas? As terras que já não têm nenhum impedimento jurídico ou administrativo apresentamos no relatório da transição e vamos agora trabalhar para que o Lula faça isso [a homologação] nos cem primeiros dias de governo.
Depois, como a Funai vem para o Ministério dos Povos Indígenas, ela vai seguir com atribuição das primeiras etapas de demarcação, o estudo, identificação e delimitação. E aí passa do Ministério da Justiça para o ministério indígena a atribuição de fazer a portaria declaratória, que depois vai para a Casa Civil e à Presidência para homologação.
Quem vai presidir a Funai? O presidente Lula ofereceu a presidência da Funai para a deputada Joenia [Wapichana, da Rede-AP, que aceitou o convite nesta sexta (30), após a entrevista]. Vamos aguardar se ela vai aceitar. E também vamos mudar o nome de Fundação Nacional do Índio para Fundação Nacional dos Povos Indígenas, mas mantendo a sigla Funai.
O governo Bolsonaro nomeou policiais e militares para a Funai. Vocês já estudam trocar esses nomes? Acabou a era militar, são novos tempos. Esses cargos serão ocupados por indígenas ou por pessoas não indígenas indicadas pelos indígenas. Nossa decisão é de desmilitarizar, nos primeiros dias de governo. A maioria desses cargos são de confiança e eles serão automaticamente exonerados no dia 31. E há alguns servidores que vamos pedir o remanejamento.
Quando a Folha noticiou a escolha do seu nome para o ministério, algumas lideranças publicamente defenderam que a senhora seguisse na Câmara e que a Joenia assumisse a pasta. Como está a relação com o movimento indígena? É natural essa reação, é muito difícil uma representação que consiga contemplar e agradar todo mundo. No início, minha decisão era de não abrir mão do meu mandato, que foi uma conquista gigante. Nós fizemos a campanha em torno do aldear a política, e isso é estar no Congresso, no Executivo e também no Judiciário, para o qual inclusive trabalhamos para indicar o advogado Eloy Terena ao Supremo Tribunal Federal, ainda no governo Lula.
Na Câmara, teremos a Célia Xakriabá [PSOL-MG], a Juliana Cardoso [PT-SP] e meu suplente é o Ivan Valente [PSOL-SP], histórico defensor da pauta indígena.
Como será o diálogo com outras áreas do governo, como o agro? Acho que conversar é possível, no sentido de achar os pontos de convergência, mas são interesses muito conflitantes. Tanto o agronegócio como a mineração deixam prejuízo grave para os povos indígenas. É difícil defendermos a mineração, sendo que na nossa experiência ela só traz prejuízo, não existe mineração sustentável, assim como não existe soja sustentável.
Agora, precisamos começar a pensar de fato em uma agricultura sustentável, uma mudança na produção dos sistemas alimentares, algo que vai levar muitos anos. Criar uma nova consciência para que a produção de alimento possa garantir renda e também a proteção ambiental.
Se seguirmos com esse modelo totalmente predatório, ninguém vai muito longe. Nossa ideia nesse ministério é buscar essa nova consciência, e isso precisa começar por nós, que sofremos os primeiros impactos da negação da demarcação de terra em prol de atender os setores do agronegócio e da mineração. Nós vamos manter muito firme essa nossa posição para, de fato, garantir a vida.
A sra. afirmou, mais cedo, que ainda precisa aprender a calçar sapatos. Por quê? É automático, eu me sento e o sapato sai do pé! Vou botar um chinelinho bem aqui ó, vou ficar circulando aqui dentro com ele, porque eu não vou aguentar ficar calçada o dia inteiro. Isso é sinônimo de pé no chão: eu tenho que aprender a calçar sapatos, mas mantendo os meus pés pisando no chão.
Estamos ocupando um lugar que nós nunca ocupamos na vida. E eu falo sempre nós, porque não estou aqui sozinha, estamos aqui com muita gente, com o movimento indígena. Esse ministério é uma demonstração de respeito à nossa luta secular, e vamos fazer de tudo para que ninguém nunca mais venha destruir esse ministério.
RAIO-X
Sônia Guajajara, 48 Nasceu na Terra Indígena de Arariboia, no Maranhão, estudou em Imperatriz (MA) e depois se formou em Letras e Enfermagem na Universidade Estadual do Maranhão. Ativista, foi candidata a vice-presidente em 2018 na chapa de Guilherme Boulos, ambos pelo PSOL, e em 2022 foi eleita deputada federal por São Paulo
Sônia é do povo guajajara/teneteara, que habita nas matas da Terra Indígena Arariboia, no Maranhão. Seus pais eram analfabetos, mas aos 10 anos, saiu da sua terra para estudar na cidade de Imperatriz. Onde trabalhou em casas de família em troca de moradia.[12]
Deixou Arariboia, aos quinze anos, contrariando a vontade dos pais, para estudar o ensino médio, em Minas Gerais, com o suporte da Funai. Após se formar na escola, retornou ao Maranhão e estudou Letras e Enfermagem na Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Além das duas graduações, Guajajara fez pós-graduação em Educação Especial. Foi conquistando espaço com a militância e ganhou projeção em órgãos internacionais, como no Conselho de Direitos Humanos da ONU.[13]
Em 2017, Alicia Keys, artista engajada com diversas causas sociais, cedeu seu espaço no palco principal do Rock in Rio para que a líder indígena Sônia Guajajara discursasse pela demarcação de terras na Amazônia, momento em que foi ovacionada pelo público ao som de "Fora Temer!". A fala aconteceu durante a execução da música "Kill Your Mama", que aborda justamente a devastação do meio ambiente.[16][17]
Em 31 de novembro de 2017, Sônia Guajajara foi apresentada pelo setorial ecossocialista do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) como pré-candidata à presidência da república.[18] Através de um manifesto "Por uma candidatura indígena, anticapitalista e ecossocialista"[19] no site 518anosdepois.com, que faz menção aos 518 anos da colonização europeia no Brasil.
No dia 3 de fevereiro de 2018, Sônia Guajajara foi lançada como pré-candidata a vice-presidente da república na chapa encabeçada por Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, tornando-se a primeira pré-candidata de origem indígena à presidência da república.[20] A chapa Boulos/Sônia alcançou a 9.º colocação no primeiro turno da eleição presidencial, com 617.122 votos.
Em 22 de março de 2022, Sônia foi confirmada como pré-candidata ao cargo de deputada federal pelo estado de São Paulo nas eleições legislativas deste ano.[22] Em 03 de outubro do mesmo ano ela se torna a primeira indígena a ser eleita deputada federal pelo estado de São Paulo.[23] Foi eleita com 156.966 votos.[24]
Sônia Guajajara é mãe de Yaponã, 22 anos, Mahkai, 20, Ywara, 16, e Intaniara, que morreu de hepatite aos 2 anos. Ela é chamada de “Soninha” por amigos e familiares e já foi casada por 18 anos com Lindomir, pai de seus filhos, de quem se separou em 2014.[12]
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